Carta aberta a dois movimentos abolicionistas

Carta aberta a dois movimentos abolicionistas: negro e pelos direitos animais



George Guimarães, VEDDAS -
Vegetarianismo Ético, Defesa dos Direitos Animais e Sociedade

28/10/2007


Primeiro eles vieram atrás dos comunistas, mas eu não era um comunista, por isso eu não falei em favor deles.

Depois eles vieram atrás dos socialistas e dos sindicalistas, mas eu não era um deles, por isso eu não falei em favor deles.

Depois eles vieram atrás dos judeus, mas eu não era um judeu e por isso eu não falei em favor deles.

E quando eles vieram atrás de mim, não havia mais ninguém para falar em meu favor.


- Poema do pastor alemão Martin Niemoller (1892-1984) sobre a inatividade dos intelectuais alemães enquanto observavam o partido nazista ascender ao poder e eliminar cada um dos grupos que se contrapunha ao regime nazista.



Dos fatos

A última semana trouxe uma notícia que causou a mobilização de alguns representantes dos movimentos negro e pelos direitos animais. O texto que deu início à polêmica foi publicado no dia 21/10/2007 em http://www.afropress.com/noticias_2.asp?id=1371 e relata uma denúncia feita ao Ministério Público de São Paulo contra um grupo de defesa animal que publicou a imagem da escrava Anastácia ao lado da imagem de um cão submetido à crueldade humana.

No dia 26/10/2007 foi publicado na mesma agência de notícias, mantida pela ONG denunciante, um editorial com o título “A fúria vegan e o nosso direito” no qual se lê uma generalização entre a imagem considerada ofensiva pela ONG denunciante e todo o movimento pelos direitos animais. Sobre o teor do referido editorial (que pode ser lido em http://www.afropress.com/editorial.asp com cópia em www.veddas.org.br/editorialafropress.htm ) eu comento mais adiante na presente carta. Por hora, relato que foi após a publicação do referido editorial que pude perceber o teor que estava tomando a queixa movida por representantes do movimento negro,, configurando uma enorme extrapolação dos fatos.


Reflexão e o verdadeiro paralelo

Será que há um humano que não se choque ao ver fotos como as dos campos de concentrações nazistas ou a da escrava Anastácia submetida ao uso de uma máscara de ferro? Eu duvido que haja quem possa ser indiferente a essas imagens, mas talvez eu apenas esteja sendo ingênuo. O que eu posso afirmar ao certo sem incorrer no risco de estar sendo ingênuo é que os ativistas pelos direitos animais não olham para estas imagens com indiferença. E, se alguns grupos escolhem usar estas imagens para traçar um paralelo aos abusos cometidos contra os animais não-humanos, não o estão fazendo para minorar a relevância da tortura e da violação que essas imagens de negros e judeus representam. Eles o fazem porque entendem que a dor e a miséria vivida pelos animais na nossa sociedade é imensa, e o uso desse paralelo busca resgatar na mente coletiva a informação de total repúdio às atrocidades da escravidão e do holocausto nazista e assim convidar as pessoas a refletirem sobre o holocausto diário que vivem os animais não-humanos que a nossa sociedade subjuga da mesma maneira que antes já subjugou outras etnias e religiões manifestas dentro da nossa própria espécie. Portanto, a comparação não é pejorativa, haja vista que não compara os diferentes seres ali retratados, mas sim o sofrimento e a injustiça a que ambos foram e continuarão sendo submetidos até que uma parcela representativa da sociedade tome para si a luta que é, na verdade, uma luta em benefício do outro que tem representação minoritária (negros, judeus, mulheres, índios, homossexuais, crianças, animais). Assim foi o caso da emancipação dos negros, assim será o caso da libertação animal.

A comparação que está sendo debatida atualmente tem o objetivo de condenar ambas as situações, considerando uma injustiça como sendo tão inquestionável quanto a outra. Se para a pessoa comum as imagens do holocausto nazista e da escravidão dos negros representam atrocidades e injustiças, para um ativista pelos direitos animais as imagens de açougues e frigoríficos representam um sentimento semelhante de dor e injustiça. Ainda que não possamos comparar os sentimentos de dor e sofrimento, mesmo entre indivíduos da mesma espécie, é prudente refletir que a insensibilidade ao sofrimento alheio e a desconexão com o meio natural são os desvios essenciais que levam alguns (na verdade, muitos) seres humanos a cometerem atos de indiferença contra animais humanos e não-humanos igualmente. A injustiça é o elo comum que une em seu flagelo os membros dessas diferentes espécies: a humana e a não-humana.

O movimento que luta pela abolição da exploração animal surgiu após os tristes episódios da nossa civilização que fizeram vítimas os negros e os judeus. E é justamente por causa dessa cronologia que o movimento em defesa dos direitos animais teve muito que aprender com as lutas árduas de movimentos vitoriosos que o precederam.

Observando outros movimentos de justiça social nós do movimento pelos direitos animais podemos aprender muito sobre a perversidade, a indiferença e a ganância humanas e os mecanismos que as fazem operar e também os que as desestabilizam. A perversidade dos que cometem as atrocidades, a indiferença dos que nada fazem para combatê-las e a ganância dos que lucram com elas. Estes são aspectos comuns em diferentes formas de exploração animal, humana e não-humana. A indignação que estes movimentos experimentam também é comum, sejam eles os movimentos pelos direitos das mulheres, direitos das crianças, direitos dos negros, direitos humanos ou direitos animais. Todos têm a mesma motivação e todos querem a mesma coisa: justiça. Justiça para as vítimas da opressão, independente de etnia, religião ou espécie. Por termos aprendido tanto observando os vilões e heróis de movimentos que nos antecederam, é inconcebível a idéia de que um ativista pelos direitos animais pretenda minorar o martírio das vítimas de atrocidades históricas como a escravidão e o holocausto nazista, pois ele enxerga não apenas o martírio já claro para o senso comum. Ele vai além e estende essa percepção também aos animais não-humanos.

Insisto em dizer que a comparação de negros a cães e judeus a porcos não foi o intuito do grupo que fez uso da comparação de imagens das vítimas das atrocidades contra negros e judeus com as imagens das atrocidades cometidas contra animais não-humanos. Se algum grupo se sentiu ofendido, foi porque não entendeu a mensagem, que era na verdade a de comparar duas formas de injustiça, ambas inaceitáveis, ambas condenáveis. O grupo que se sentiu ofendido poderia ter convidado os responsáveis a dialogar e certamente teriam chegado a um entendimento. Ao contrário, a via escolhida foi a das conclusões precipitadas e não a do entendimento, o que de fato me surpreendeu, pois eu não esperava que uma parcela tão representativa e com tamanho conhecimento sobre o que é a discriminação e sobre a importância do diálogo agisse desta maneira precipitada sem antes buscar entender qual era de fato a mensagem. Uma breve pesquisa teria revelado que tal comparação é largamente utilizada por prêmios Nobel, filósofos e sobreviventes do holocausto nazista, entre outros. Os livros The Dreaded Comparison e Eternal Treblinka são dois exemplos de obras que exploram a comparação como meio de sensibilização para ambas as causas, sem com isso minorar qualquer uma delas.


Aos nossos ativistas

Mas já tendo sido o fato agora levado para o âmbito de uma disputa judicial e seguido por ataques editoriais em um website representativo do movimento negro, o que devemos fazer? Eu ainda acredito na via do diálogo. É importante que os ativistas pelos direitos animais não percam o foco na discussão. Estamos falando de um mal-entendido? Então o assunto deve ser tratado como tal? Quando chamamos um pecuarista de assassino, será que ele entenderá que o estamos acusando de ter assassinado um humano? Talvez ele entenda assim, pois se não contextualizar, jamais entenderá que estamos nos referindo à morte (ou o assassinato) de um boi. Ele simplesmente não entenderá o que pretendíamos dizer com isso, pois para ele o ato de matar um boi é algo natural. Da mesma maneira que alguns senhores de escravos entendiam ser natural o tratamento que davam à sua “propriedade”. E o que esperaríamos que ele fizesse? Que antes de nos denunciar por calúnia, ele buscasse entender o que estávamos dizendo, certo? Afinal, se o dissemos, esperamos que ele escute da maneira e com a intenção que dissemos, do contrário não haveria propósito em tê-lo dito. Quando uma indústria acusa ativistas da frente de libertação animal de criminosos, o que queremos que a sociedade entenda? Queremos que ela entenda o que motivou aqueles ativistas a cometerem atos considerados como criminosos pelo sistema vigente, para que assim, talvez, as pessoas possam entender o real sentido da ação que realizaram.

Diálogo. É isto o que desejamos entre o nosso movimento e a sociedade, pois sem ele a mensagem se perde. O mesmo é o que devemos desejar entre o nosso movimento e os outros movimentos, em especial aqueles que têm tantos aspectos comuns com a nossa luta, como é o caso do movimento negro. Atitudes como a da ativista citada no início do editorial publicado em 16/10/2007 pela agência de notícias Afropress não são de forma alguma consoantes com o pensamento dos integrantes do movimento pelos direitos animais. Aproveito para registrar aqui o meu repúdio ao comentário por ela enviado à referida agência de notícias.

Posso afirmar que esta não é a norma em nenhuma das alas do nosso movimento. O que se lê na fala dela é uma ameaça pura e simples, sem qualquer pretensão de diálogo ou entendimento. Se desejarmos partir do princípio de que houve um erro de interpretação por parte de alguns representantes do movimento negro, a única coisa a se fazer é mostrar o que as imagens, a nosso ver, representavam. Depois disso, devemos procurar entender o motivo da ofensa da outra parte e estarmos dispostos a desculparmos-nos publicamente se for esse o caso. Este tem sido o teor predominante nas mensagens enviadas à Afropress às quais eu tenho tido acesso por meio de cópias enviadas a mim. Na verdade, posso dizer que nenhuma das mensagens que recebi trazia o tom ameaçador da mensagem que foi escolhida pela Afropress para dar o tom do seu editorial e seguir adiante comparando o nosso movimento a um movimento fascista e totalitário. Todas as mensagens das quais eu recebi cópia buscavam o entendimento, o que devo dizer muito me alegrou ao ver nelas refletida a maturidade que atingimos ao longo dos últimos anos.


Objetivos comuns e união

Ainda que a agência tenha recebido a mensagem no tom referido em seu editorial, estou certo de que essa não foi representativa da maioria das mensagens recebidas. Sobre isto, devo confessar que fiquei intrigado sobre o que pretendiam os jornalistas que elegeram justamente a mensagem em tom ameaçador para dar o tom do seu editorial. Mas continuo otimista e convicto da possibilidade do diálogo. Na verdade, não consigo conceber a idéia de que possa haver alguma divergência entre os dois movimentos (o movimento negro e o movimento pelos direitos animais), salvo algumas questões pontuais como os ritos que fazem uso do sacrifício de animais.

No que diz respeito ao combate ao preconceito e à injustiça (sejam estes na forma do racismo ou do especismo), não vejo motivo para divergirmos. Na verdade, não há uma referência mais comumente utilizada no movimento pelos direitos animais do que a referência ao movimento pela abolição da escravatura. Este nos serve como uma lição de rico aprendizado, um exemplo e um símbolo da possibilidade da vitória de parcelas minoritárias contra a ignorância e a conseqüente modificação do status quo. Tamanha é a nossa proximidade com os ideais do movimento negro que a palavra que usamos para designar a ala mais avançada e coerente do nosso movimento foi emprestada justamente do movimento negro: abolicionistas é a palavra.

Enquanto abolicionistas e anti-especistas inevitavelmente compactuamos com a luta anti-racista e, portanto, não consideramos e nem desejamos considerar o movimento negro como um movimento inimigo. Sabemos que tanto o movimento negro quanto o movimento pelos direitos animais têm questões importantes que urgem pela nossa atenção. Todas as formas de injustiça são questões urgentes e para combatê-las precisamos dedicar toda a nossa energia àquilo que de fato importa. Se os integrantes desses dois movimentos precisarem debater, que seja para chegarmos a soluções conjuntas sobre as questões comuns às quais combatemos, e não para criarmos e alargarmos atritos que podem ser resolvidos por via de um diálogo claro e direto.

Brigas e disputas por questões pequenas só fazem atrasar a luta pela abolição de todas as formas de opressão quem perde com não são os ativistas nem de um e nem e outro movimento, quem perde são os inocentes que contam conosco para a sua defesa. Eu proponho que este incidente que eu insisto em querer crer que foi apenas um mal-entendido possa nos servir como oportunidade para conhecermos melhor uns aos outros. Eu tenho a certeza de que a parcela mais representativa do nosso movimento está disposta ao diálogo e ao entendimento e é capaz de apreciar as vantagens mútuas que surgiriam da união de nossas forças. Os resquícios da longa história de opressão vivida pelos negros podem estar impondo um distanciamento da possibilidade de entender a nossa mensagem e compreender os nossos objetivos. É justamente nos nossos objetivos que está a nossa igualdade e é nas nossas diferenças que estão as nossas possibilidades de aproximação. A própria possibilidade dessas diferenças co-existirem entremeadas aos nossos objetivos semelhantes já nos mostra que os nossos movimentos têm muito que aprender um com o outro. As nossas oportunidades de aprendizado com o movimento negro certamente têm sido muitas e esperamos poder retribuí-los por isso.


George Guimarães
VEDDAS – Vegetarianismo Ético, Defesa dos direitos Animais e Sociedade
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